quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

PL 6840/2013: o Ensino Médio adequado aos interesses privatistas

Em 2012, foi formada, na Câmara dos Deputados, em Brasília, uma Comissão Especial destinada a promover Estudos e Proposições para a Reformulação do Ensino Médio. Entre os objetivos estava, supostamente, a busca de soluções para problemas como evasão e reformulação do currículo. No final do ano passado, a Comissão apresentou o projeto de lei (PL) 6840/2013, que altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (LDB) ao propor mudanças significativas na organização do Ensino Médio. A APP-Sindicato enxerga o projeto como um retrocesso. Apresentamos a seguir uma análise apontando as incongruências do PL 6840/2013 comparando-o com alguns marcos legais sobre o Ensino Médio.
1) O Art. 1° PL 6840/2013 altera o Art. 24 da LDB, ampliando a carga horária de 2400 horas para 4200 horas a serem cumpridas até o final do Ensino Médio. Para o ensino diurno se propõe uma jornada de 7 horas diárias de trabalho efetivo em sala de aula com duração total de 3 anos. Para o ensino noturno a previsão é de um ano a mais para a conclusão, estendendo-o para 4 anos, com pelo menos 4 horas de trabalho efetivo em sala de aula e com a complementariedade de 1000 horas que serão definidas pelos sistemas de ensino (Art. 2° PL 6840/2013).

:: A organização diferenciada dos tempos escolares já é algo previsto no Art. 14° da Resolução MEC/CNE/CEB 2/2012 que define a Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio. A meta 6 do PNE (em tramitação no Congresso Nacional) prevê a educação em tempo integral de no mínimo 7 horas diárias. A APP-Sindicato historicamente defende que além da educação em tempo integral tenhamos uma educação integral, envolvendo atividades acadêmicas, multidisciplinares, culturais e esportivas. No entanto,  a realidade de muitos dos(as) estudantes do Ensino Médio é de uma dupla jornada, dividindo-se entre o estudo e o trabalho no contraturno. A obrigatoriedade discrimina uma vez que só os(as) com melhores condições sociais teriam possibilidades de frequentar o ensino de 7 horas levando muitos dos(as) estudantes, a maioria das classes populares, para  o ensino noturno.

:: Na proposta que está Câmara Federal, as 7 horas diárias terão como ênfase as áreas de linguagens, matemática, ciências da natureza e ciências humanas sem explicitar o que se entende por cada uma das áreas de conhecimento, algo que as DCNEB, a Resolução MEC/CNE/CEB 2/2012, e o Parecer CNE/CEB 5/2011 deixam claro. Neste sentido ficam dúvidas quanto ao ensino de algumas disciplinas como artes e educação física uma vez que a PL 6840 nada trata disto. Além destas questões a Resolução MEC/CNE/CEB 2/2012 no Art. 5° estabelece a formação integral do estudante em uma abordagem integrada do currículo que envolve o diálogo entre as áreas do conhecimento na perspectiva da interdisciplinariedade e da contextualização e prevê a integração entre os conhecimentos, as dimensões do trabalho, da ciência, da tecnologia e da cultura. Como se observa, trata-se de uma proposição intregral e integralizadora, muito além do que se propõem no PL 6840/2013.

::  Outra dúvida está na diferenciação de organização do ensino noturno, em especial, no cumprimento das 1000 horas que ficará a critério de cada sistema de ensino e que abre a possibilidade da precarização do ensino através da educação à distância ou sistemas virtuais, aliás, possibilidade que é sustentada pelos relatores na justificativa do projeto.

2) O § 3 do Art. 1° do PL 6840/2013 estabelece como temas transversais a prevenção ao uso de drogas e álcool; a educação ambiental; a educação para o trânsito; a educação sexual; a cultura da paz; o empreendedorismo; as noções básicas da Constituição Federal; as noções básicas do Código de Defesa do Consumidor; a importância do exercício da cidadania; a ética na política; e a participação política e democracia.

:: Aparecem entre os temas aqueles ligados a uma vertente liberal de educação como empreendedorismo e direito do Consumidor. Outros são produtos que atendem claramente a uma certa ‘espetacularização’ midiática como os relacionados a ética na política, noções da constituição federal e participação política.

:: O Parecer CNE/CEB 5/2011 trata da transversalidade como forma de “organizar o trabalho didático-pedagógico” entre as disciplinas e que portanto para que isso ocorra é de fundamental importância a interdisciplinariedade. Elas – a transversalidade e a interdisciplinariedade –,  não são entes distintos mas complementares e apontam para uma educação integralizadora. Não ficam claros os motivos para a inclusão destes temas. Justificá-los como sendo “relevantes para os jovens” na atualidade não são suficientes. De igual forma a PL 6840/2013 nem em suas justificativas discute a forma como esses temas transversais serão tratados e remete a discussão às questões metodológicas (Art. 1°, § 2), quando na verdade a transversalidade e interdisciplinariedade são também questões epistemológicas.

::  No âmbito das discussões mais gerais sobre a educação, verifica-se que experiência curricular envolvendo a transversalidade mostrou-se inócua. Eles apareceram na década de 90 nos PCNs numa perspectiva educacional neoliberal. O entendimento atual e que a Resolução MEC/CNE/CEB 2/2012 trata é de uma compreensão curricular integralizadora e relacional entre os conhecimentos e as sociedades que os produziram e os produzem e, ao se vincular ao contexto histórico, social e cultural, favorecem que os(as) estudantes tenham uma posição mais consciente diante das realidade e assim adquiram uma capacidade maior de juízo e ação diante desta mesma realidade

3) Já o § 5 do Art. 1° estabelece que no último ano do Ensino Médio o(a) estudante deverá optar por umas das seguintes opções formativas: ênfase em linguagens; ênfase em matemática; ênfase em ciências da natureza; ênfase em ciências humanas; e formação profissional. Cria-se assim uma base comum e uma base diversificada centrada nas ênfases de ensino ou profissionalizante. O projeto ainda permite que após a conclusão do Ensino Médio, o retorno dos(as) estudantes para que façam outra opção formativa no ano subsequente ao da conclusão (§ 7° do Art. 1°).

:: Se passaram mais de 40 anos da LDB 5692/71, lei claramente tecnicista e adequada a lógica nacional desenvolvimentista dos governos militares que é ressuscitada em nome do pragmatismo e vertente liberal; de que adolescentes prescindam de uma educação geral para que se conformem as exigências do mercado ou do acesso a universidade. Esta é uma proposta que possivelmente surgiu do debate com as Escolas Particulares. Numa edição da Revista Escola, do SINEPE/PR (Sindicato das Escolas Particulares do Paraná) de setembro de 2013, ao tratar do novo ensino médio, aparece como proposta o chamado de Fluxo de Conteúdos e prevê para 3° ano do Ensino Médio exatamente o que se propõe no PL 6840/2013, qual sejam o ensino por ênfases e a educação profissional. Ficam evidentes mais uma vez as características privatistas e liberais da atual projeto.

:: Se o(a) estudante concluiu o Ensino Médio e a ele(a) foi entregue um diploma, qual o sentido desse retorno? Se a proposta fosse efetivamente integralizadora como aquilo que se propõem nas DCNEB e na Resolução MEC/CNE/CEB 2/2012 este(a) estudantes estaria apto(a) para acessar níveis mais elevados de ensino.

:: Em relação às escolhas dos(as) estudantes, coloca-os(as) sob a espada de Diógenes haja vista que pressupõe que aos  16 ou 17 anos já tenham clareza sobre seu futuro profissional, leva ao entendimento que aqueles(as) que optaram pela formação profissional não continuarão seus estudos universitários e penaliza os(as) que fizeram “más escolhas” fazendo-os(as) voltar para os bancos escolares no mesmo Ensino Médio.

:: Quanto a forma como a educação profissional é tratada no Art. 1° do Projeto, estabelecendo um ano para a formação profissional, o Parecer CNE/CEB 5/2011 e a Resolução MEC/CNE/CEB 2/2012  estabelecem um mínimo de 3200 horas integradas entre ensino regular e educação profissional que se dá ao longo dos três anos de estudos, não no tempo exíguo proposto pelo Projeto, uma forma apressada e desqualificada de preparação técnica e profissional. O Projeto ainda propõe em seu Art. 2° a parceria entre os entes federados e o setor produtivo e a justificativa para esse alinhamento ao mercado, segundo os relatores, é o fato do “setor produtivo ser o maior interessado na formação dos novos técnicos”. Uma explicita adequação aos interesses privatistas em que a educação condiciona-se ao mercado de trabalho e abre-se para interesses como os atuais pautados pelo sistema S.

4) O § 2 do Art. 2° prevê a cessação das matrículas no ensino noturno para menores de 18 anos.

:: Em 2010 as matrículas dos(as) estudantes até 17 anos no Ensino Médio foi na ordem de 5,4 milhões, representando 65% das matrículas totais do Ensino Médio. Boa parte destes(as) estudantes estavam cursando o ensino noturno e dividiam as horas de estudos noturnos com o trabalho diário. Trata-se de uma questão social, de prover a materialidade da existência, produto de anos de desigualdades sociais.

:: Tende a levar os(as) estudantes ao abandono dos estudos ou a postergação da conclusão do Ensino Médio uma vez que os(as) estudantes trabalhadores(as) entre frequentar o Ensino Médio e o seu trabalho, não exitariam em deixar os estudos de lado. Há uma outra característica que dificulta a matrícula dos(as) estudantes no Ensino Médio nos turnos matutino e vespertino, que é a  falta de vagas ofertadas para estes turnos nas redes estaduais públicas, uma vez que as redes priorizam no diurno o Ensino Fundamental.

5) As avaliações e processos seletivos que dão acesso à educação superior serão feitos com base na opção formativa do aluno (§ 11 do Art. 1°).

:: Em 1942 era promulgada a Reforma Capanema que traria mudanças significativas na organização do então ensino secundário colegial, dividindo-o entre clássico e o cientifico.  O curso clássico, encaminhava para os vestibulares de Direito ou para um dos cursos da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. O científico para os vestibulares de Medicina, Odontologia, Farmácia ou Engenharia. Algo semelhante se propõe com o PL 6840 ao condicionar que o acesso a universidade tenha como base a escolha formativa do(a) estudante.

:: Constitui-se e um cerceamento do direito de escolha, uma vez que condiciona os(as) estudantes a escolherem apenas as áreas afins às ênfases formativas. Coloca-os(as) diante da precocidade da escolha profissional. E como ficarão aqueles(a)quelas que optarem pela formação profissional, não poderão fazer o vestibular? E os(as) que optarem por curso universitário e mais adiante resolverem mudar de área, deverão retornar ao Ensino Médio para cumprir outra ênfase formativa para aí sim prestar outro processo seletivo condizente com a nova área?

Os relatores do projeto equivocadamente articulam um consenso duvidoso de que o currículo do atual Ensino Médio está “ultrapassado, carregado, com excesso de conteúdos, formal e padronizado”. A atual proposição para o Ensino Médio é recente. As DCNGEB são de 2010. O Parecer do Conselho Nacional de Educação sobre as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio é de 2011 (CNE/CEB 5/2011) a Resolução que define as Diretrizes Curriculares para o Ensino Médio é de 2012 (CNE/CEB 2/2012). Tratam-se de documentos recentes e que tem pautado as políticas atuais do MEC, dentre elas o Pacto pelo Ensino Médio no Brasil, que prevê a formação continuada de professores do Ensino Médio orçado em 1 bilhão de reais que será executada por agências formadoras reconhecidas nacionalmente. A afirmação de que tudo soa ultrapassado é no mínimo desconsiderar o que se vem fazendo nos últimos anos e soa oportunista no sentindo de querer pactuar os interesses privatistas, liberais e pragmáticos em detrimento dos interesses públicos.

A APP-Sindicato manifesta-se de forma contrária a PL 6840/2013 e centrará esforços pela sua não aprovação, uma vez que ela precariza o Ensino Médio, desconsidera os marcos legais existentes como se nada tenha – ou esteja – sendo feito para combater os problemas desta etapa de ensino. Além disso, o PL penaliza de forma muito evidente os(as) estudantes, maiores interessados(as) em uma formação sólida integral que os(as) humanize e os(as) ajude na sua compreensão de mundo, e não só os(as) prepare precariamente para o mercado de trabalho (ainda mais numa perspectiva liberal como as que são propostas no Projeto).
Direção Estadual
APP-Sindicato


Fonte:http://www.appsindicato.org.br/Include/Paginas/noticia.aspx?id=9765

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